domingo, 28 de outubro de 2012

TEATRO/CRÍTICA- O DORMINHOCO




Ricardo Schöpke
Crítico de teatro, encenador, ator e cineasta

Na vida, atuamos durante todo o tempo. Vivemos cobertos por inúmeras máscaras sociais. Assim, o teatro é um lugar onde devemos simplesmente ser. Onde todas as máscaras devem cair. Este é um dos mais importantes princípios do encenador polonês Jerzy Grotowski, desenvolvidos durante anos de pesquisas e laboratórios na Polônia e Itália. Poucos homens de teatro, no século XX, conseguiram traduzir com tanta síntese e sabedoria as artes cênicas e o ofício ator. O teatro essencial. O ator como maestro absoluto. O ator como um arquiteto da cena, onde as ferramentas principais são o seu corpo e a sua voz - e a multiplicidade de possibilidades que extraímos destes dois poderosos instrumentos.

Poucas cias no Brasil, incluindo aí o teatro adulto, têm um trabalho tão diferenciado e peculiar como o da curitibana Cia do Abração. A Cia do Abração respira e transpira teatro essencial. Ela vive arte durante todos os seus dias. Como uma verdadeira família teatral, ela forma, informa, ensina, acolhe, abraça, vive, representa e apresenta pequenas jóias sobre o universo da criança de todas as idades, que habita dentro de nosso mais profundo ser. E esse é o ser que dialoga com o "ser" de Grotowski. Após o terceiro sinal, o espetáculo se inicia, entretanto com a Cia do Abração, a sensação que temos é que neste momento uma imensa caixa de surpresas é aberta, e somos todos convidados a entrar em um mundo mágico, nunca antes habitado e aparentemente inatingível. É assim que nos sentimos, mais uma vez, com a nova criação da Cia: O Dorminhoco, apresentado na terça-feira, no Teatro Guairinha, dentro do IV Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades . O Dorminhoco - inspirado no livro homônimo de Cleo Busato -  é assim chamado na escola, porque adora sonhar. Por meio dos seus sonhos fantásticos, ele vai aprendendo a se conhecer melhor. Entre uma professora chata e colegas que cismam em implicar com ele. O Dorminhoco fala sobre os seus sonhos fantásticos, a experiência do primeiro amor e a dificuldade de se relacionar na escola, por ser diferente da maioria dos alunos. 

Como em uma grande tela de pintura, a direção de Leticia Guimarães, vai pintando e desenhando todos os movimentos, construídos com grande precisão melimétrica diante de nossos olhos encantados. O espetáculo começa em preto, branco e cinza e aos poucos o palco vai sendo inundado de cores, objetos geométricos circulares, em tamanhos pequenos, médios e grandes, que vão tomando vida e forma através da exímia manipulação dos atores, mérito também da coreografia refinada e precisa de Fabiana Ferreira. A sonoplastia de Karla Izidro nos faz flutuar com tamanha leveza, e ao mesmo tempo é curiosa, pois parece ser inspirada claramente no famoso grupo da Inglaterra Stomp, que em inglês quer dizer batidas de pé. É colocado em cena latões de lixo, bem característicos do famoso grupo, e os atores fazem algumas percussões com batidas de pé, além da personagem da professora, que entra em cima de duas latas de tinta, criando sons e movimentos pesquisados pelo Stomp. É difícil falar de cada uma das preciosidades que compõem o universo criado em cena pela Cia, pois todas elas são essenciais e se complementam: o cenário funcional e móvel de Blas Torres, os figurinos de base preto e branco, com detalhes multicoloridos de Eduardo Giacomini, a luz muito bem desenhada de Anry Aider, o belo teatro de sombras, e as oficinas de preparação técnico/artísticas. No elenco se destaca a experiência e domínio técnico de Simão Cunha, e o restante dos atores, talvez por ser a formação mais jovem da Cia, apesar de sua grande entrega e empenho, ainda não encontraram o tom exato de suas personagens, mas tenho certeza que em um futuro próximo isso será possível. Acredito em todos eles! Os mesmos são também bichos de teatro. São da família Abração!