sábado, 28 de julho de 2012

TEXTO CILENE TANAKA -

Um galpãozão no Jardim Social. Não estou habituada à grama verde, aos pássaros cantando, muito menos ao silêncio demasiado que me permite ouvir mais a mim mesma do que seria exigido pela sanidade.
A porta imensa, tipo castelo medieval infantil, é aberta pelo calmo senhorinho.
Sinto-me uma princesa, só que de ressaca – não deveria ter bebido ontem. Ressaca, fome e espetáculo infantil, onde já se viu?
O Dorminhoco...a dorminhoca sou eu: em jejum há muitas horas devo dormir o sono eterno em poucos instantes. Começa logo, começa. E o galpãozão tem cheiro de sebo.
Mas, olha! É um sebo! Tem o Stardust em vinil, tem muito livro e um cheiro bom.
A diretora da peça chegou e, podre, converso. Ela fala, fala, e meus olhos, não sei porque, se enchem de água. O espetáculo começa depois dela que, como o sertanejo, é uma forte.
Aliás, que lugar de sertanejas a Cia do Abração. Só é mesmo possível oferecer o que temos para dar. Este nome não é a toa.
Não há cortina e dois atores equilibram-se sobre tambores de lixo. Meus olhos encheram d´água, mas credo! De novo? Deve ser saudades da minha infância.
Eu e meu primo brincando de morcego. A gente se pendurava na balança e sempre caía de cabeça no chão.
Mas a gente ria. Ria muito. Mesmo com dor, a gente ria muito da idéia de um morcego incompetente que cai de cabeça quando se pendura onde quer que os morcegos se pendurem.
Vejo uma menina sendo o dorminhoco que, segundo uma pobre referência, sofre bulling.
Mas é muito mais que isso, é tudo muito mais. É uma aura instaurada de lirismo, de sonho, de infância projetada.
O figurino colorido e a coreografia perfeita dos quatro em cena.
Claro que era número par, nada ali é dividido de maneira que não seja simétrica. E não é assim que se ensina? Pode ser que não, mas eu não queria aprender. Mas tampouco sou criança. Mentira. Sou a dorminhoca da peça. O menino que só tem por compania seu livrinho.
Ah! Já saquei! É a estrutura dramática em que o menino é vítima e depois tudo se resolve num final feliz. Olhos cheios d´água.
Credo, porque estes olhos tão lacrimejantes? "É para ver melhor" - diria meu Lobo Mau interior.

Estou muito sensível ultimamente. Nada a ver este choro agora. Olha lá, os meninos roubaram o livrinho do Dorminhoco, seu único amigo.

Mas será que esta estrutura é o máximo que podemos alcançar, mesmo que em termos de espetáculo infantil? Credo, não para de encher meu olho d´água. Que tá acontecendo?
É claro que tememos a incompreensão das crianças, se não lhes oferecermos uma estrutura conhecida, talvez elas não se envolvam, mas será? Meu olho, de novo. Não estou habituada a este olho cheio de lágrima. Não estou habituada a isso.
Ainda mais em se tratando de tema onírico, o espaço da criação livre do inconsciente é muito maior que o arco da estrutura dramática. Não estou habituada a isso. Não estou.
E quando o menino fala com os pais que, coadjuvantes, falam gramelão. Olhos cheios, cheios.
Olha! Um leão! Como faz isso? Teatro de sombra e olhos cheeios d´água. Mas porque tanto choro? Saudades da minha infância, deve ser. Nossa, mas é tão lindo. Essas cores, essa música, tudo.
Os meninos terríveis, porém sorridentes, que lhe roubam a dignidade mas não o potencial.
O dorminhoco vai se tornar filósofo pobre, ou ator favela e os “terríveis” potentes executivos.
E quem disse que os terríveis vão ser mais felizes? Eu. Eu digo que ser executivo aumenta tua probabilidade de ser feliz.
Mas também digo que diminui a necessidade da tua existência no mundo.
Eu prefiro os infelizes. Mas voltemos ao dorminhoco que é mais bonito.
E tinha uma trilha, confesso ter temido quando eles começaram a cantar, mas...olha, cantam bem! Cantam muito bem. 
Cantam lindamente!
Aquele sorriso exagerado me incomodava um pouco, um sorriso colgate que ninguém verdadeiro tem e meus olhos, de novo, cheios d´água. Mas porque isso agora? Estou muito sensível hoje. Deve ser a fome.
O cenário, e o cenário! Que lindeza! A professora chega e...Bu! Acorda O Dorminhoco: “que ce tá fazendo, menino? Acorda!
Tadinho. A professora que ajudava na trilha com o batuque de suas latas de sapato e seus óculos de bexiga.
Como pode? Como pode mostrar maldade com bexiga laranja nos olhos? É outro mundo mesmo...não adianta tentar entender.
Olhos d´água e melancolia são tudo o que podemos oferecer.
É tudo parte de um conjunto muito bem idealizado e realizado de coisas a mostrar não a dizer.
Tem que ver, tem que sentir o cheiro, tem que. Olhos d´água de novo. Não sei o que está acontecendo comigo. Pode ser a minha crise. Tenho estado chorosa há já um bom tempo.
A professora, aquela que tinha os óculos de bexiga, na verdade não é tão má assim. Sob outro ponto de vista, os óculos de bexiga viram borboleta da bondade.
E pousam sobre as costas da professora, delicadamente. 
As escolas que estão na platéia acham aquilo tudo estranho.
Tá. Tá bom, não tenho como saber se eles acham aquilo tudo estranho. Eu os acho estranhos. Eu acho criança de uma estranheza só superada pelos adultos.
Não param de se mexer, mas quando falam (o que não é tão frequente quanto se espera de crianças de 8 anos) fazem-no baixinho, no pé do ouvido do coleguinha ao lado. E falam sobre a peça.

Falam sobre a roupa, sobre a professora, sobre os meninos maus.
Tá.Talvez não falem sobre a peça, não posso ter certeza porque, apesar de meu esforço, não conseguia ouvi-las.
Mas prefiro acreditar que sim. Que falavam daquele encantamento todo e que se lembrem disso até depois, quando já não lembrarem.
A lágrima vai cair. Odeio quando a lágrima cai. Se fica só no olho, ninguém percebe, mas quando cai não tem disfarce.
Lembro do meu amiguinho contando aos seus: daí formou um lagrimão! E eu não piscava para ele não cair.
Mas deixei juntar bastante água e daí quando eu pisquei caiu um lagrimão bem grande e escorreu bem rápido pelo rosto inteiro.
Não estou habituada ao lagrimão escorrendo. Não estou habituada a isso.
No final, o menino pergunta aos atores o que é Peribéia, nome da professora dito somente uma vez no decorrer da peça.
E no final eu até esqueço o começo, quando a platéia buscava seus lugares e a inconsciente professora real deu um chacoalhão real na dorminhoca real para que ela sentasse logo na dura realidade.
O Dorminhoco saiu de Curitiba e agora vai para um Festival em Guairinha.
Se você quiser saber mais sobre a peça, veja a sinopse e maiores informações clicando aqui.
E se quiser mais informações sobre a Cia do Abração, para levar O Dorminhoco para sua escola ou algo do gênero, veja o site da Cia do Abração.

CILENE TANAKA : GAZETA DO POVO > Teatrofagia






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